18/12/2008

Trio Surdina 1956 "Ouvindo Trio Surdina Volume 2" [Musidisc DL 1009]



Quando Paulo Tapajós pensou em um conjunto instrumental para atuar em seu programa na Rádio Nacional “Música em Surdina”, convidou o amigo Garoto [Aníbal Augusto Sardinha, *1915 +1955] - um dos gênios das seis cordas que o Brasil teve a honra de ver nascer - para organizar o conjunto. Ele então indicou o seu próprio trio, que estava se apresentando com certa regularidade nos estúdios da Nacional. Garoto ao violão, Chiquinho do Acordeon [Romeu Seibel, *1928 +1993] e Fafá Lemos [Rafael Lemos Junior, *1921 +2004] exímio violinista e ex-músico da Orquestra Sinfônica Brasileira, eram a base melódica do conjunto. Uma formação diferente, ainda que acrescida de percussão [no primeiro disco a cargo de Bicalho] e contrabaixo [com Vidal], o foco era mesmo os solistas, e o resultando foi também uma sonoridade diferente. Garoto se empenhava há anos em formações musicais similares, ele parecia buscar um som específico, um dos embriões do Trio Surdina contava com Laurindo de Almeida no segundo violão, o violino de Mesquita e o contrabaixo de Faria: era o Garoto e Suas Cordas Quentes - foto promocional abaixo.

Garoto tanto conseguiu encontrar o som que procurava como também influenciou toda uma geração de músicos, como instrumentista e compositor. Segundo o pesquisador Jorge Mello - que escreve um livro sobre o músico - foi Paulo Gracindo na ocasião apresentador, quem batizou o conjunto de “Trio em Surdina” em 1952, na Rádio Nacional. Pouco tempo depois foram convidados por Nilo Sérgio, amigo, apresentador, cantor e dono do iniciante selo de discos Musidisc, para lançar uma série de LPs no formato ainda experimental de 10 polegadas, com oito faixas rodando em 33 rotações. Fafá Lemos contou que os discos não foram gravados em estúdio, mas sim editados a partir de acetatos gravados na Rádio Nacional, entregues a Nilo Sérgio por Paulo Tapajós.


Um dos embriões do Trio Surdina as “cordas quentes” de Laurindo de Almeida, Mesquita, Faria e Garoto.

Os disquinhos venderam bem, fizeram sucesso e rechearam o catálogo da Musidisc - que em poucos anos se tornaria vasto - com um padrão de extremo bom gosto e delicadeza, tanto no registro da música como também nas capas. Num esquema quase artesanal, infelizmente alguns discos eram prensados em material de baixa qualidade, no entanto Nilo Sérgio foi pioneiro na administração de uma gravadora nacional e esta ainda teve vida longa.

Em 1953 Fafá Lemos acompanha Carmen Miranda em mais uma turnê pelos Estados Unidos, gravando por lá o disco “Jantar no Rio” [1954 RCA Victor BKL 2] já em 12 polegadas - disponível aqui no bossa-brasileira. Em 1955 Garoto falece prematuramente vítima de problemas cardíacos. No mesmo ano o mundo musical brasileiro também cumpre luto por Carmen Miranda. Fafá retorna ao Brasil, mas não volta a gravar na Musidisc. Nilo Sérgio não desiste da “marca” Trio Surdina e remonta o conjunto com auxílio do excelente violonista Nestor Campos, para a gravação de mais LPs. Ao lado dos músicos Auro P. Thomaz, o “El Gaúcho” acordeonista e Joaquim Gonçalves Oliveira Filho, o Al Quincas músico originalmente saxofonista, mas no Trio Surdina encarando o violino com destreza.


O violonista Nestor Campos.

A intenção de Nilo Sérgio foi manter a aura musical criada por Garoto, e claro, impulsionar o sucesso fonográfico do seu selo. E foi bem sucedido. Mesmo sem a genialidade e ecletismo da formação original, o “novo” Trio Surdina, embora mais simples, também possuía brilho. Este disco é a prova. Lançado em 1956, possui uma sonoridade forte, com ênfase na percussão, e nos belos diálogos e fraseado dos solistas. A arrojada capa é assinada por Apolo, num resultado gráfico fora do padrão e absolutamente moderno para a época.

Como nas gravações do trio original, está aqui a mesma atmosfera de cabaré, evocando por vezes a música latina da Europa e suas tradições ciganas e através destas, a raiz árabe da música ibérica. Se a fórmula segue parecida, os músicos são outros - e claro, a visão muda. O destaque é mesmo o violão do Nestor Campos, gostoso de ouvir, preciso e com leveza. Há influencia do estilo todo particular de Garoto, mas Nestor se sai bem ao distanciar do estilo do mestre, buscando linguagem própria. Também o violino e o acordeon possuem momentos sublimes. “Linda Flor” de Henrique Vogeler por exemplo, é belíssima, com o solo de violino vibrante, valorizando a melodia pontuada com precisão pelo violão e o acordeon. “Jelousie”, clássico norte-americano, é revestida com elegância e desenhos sonoros de efeito sublime. O violino se destaca no choro “Comigo É Assim” de Luiz Bittencourt e José Menezes, com a intervenção perfeita do solo ligeiro de Nestor. Há também elegantes releituras para sucessos internacionais, como o fox “Charmaine”, a balada “Moonlight Serenade” e o bolero “Maria-lá-ô” de Ernesto Leucona, em arranjo belíssimo. Surpreendente também é “Iracema na Escócia” com bateria e violino em primeiro plano, soa como um casamento feliz e improvável entre a marcha escocesa e o samba brasileiro. Fechando o disco, um samba-choro assinado por Al Quincas “Você Não Gosta”, com destaque especial para o solo de acordeon do El Gaúcho. Um belíssimo presente aos amigos amantes da boa música!

Trio Surdina “Ouvindo Trio Surdina Volume 2”
1956 Musidisc DL 1009


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01 Jealousie [Jacob Gade]
02 Comigo É Assim [Luiz Bittencourt, José Menezes]
03 Charmaine [E. Rapee, L. Pollack]
04 Linda Flor [Henrique Vogeler]
05 Maria-lá-ô [Ernesto Lecuona]
06 Iracema na Escócia [Pernambuco]
07 Moonlight Serenade [M. Parish, G. Miller]
08 Você Não Gosta [Al Quincas]

Al Quincas: violino
Nestor Campos: violão
El Gaúcho: acordeon

para mais Trio Surdina visite as matérias de Jorge Mello:
Trio Surdina no site Musica Brasiliensis
Cancioneiro de Garoto no site Sovaco de Cobra
O Extraordinário Guitarrista Nestor Campos no Sovaco de Cobra parte 1
O Extraordinário Guitarrista Nestor Campos no Sovaco de Cobra parte 2
blog do Jorge Mello com diversas informações sobre a boa música brasileira
Trio Surdina no site Gafieiras - matéria de Ricardo Tacioli

02/12/2008

Marília Batista 1952 “Poeta da Vila nº 1” [Rádio 0001]

É com grande felicidade que trazemos aos amigos esta jóia da discografia brasileira. Trata-se do disco número um da pioneira gravadora Rádio, editado em 1952, com a cantora Marília Batista interpretando sambas de Noel Rosa em arranjos luxuosos do mestre Aldo Taranto. “Poeta da Vila” é considerado o primeiro long-playing em 33 rpms gravado e produzido no Brasil, ainda no formato inicial em 10 polegadas. Registros apontam que as gravadoras Sinter e Musidisc já haviam se aventurado no formado em 1951. Segundo o pesquisador Egeu Laus, o Brasil foi o quarto país do mundo a colocar no mercado discos em formato long-playing rodando em 33 rotações, depois dos Estados Unidos, Inglaterra e França, em 1951, com uma coletânea de Carnaval no selo Sinter. Tendo sido lançado em 1952, “Poeta da Vila” é comprovadamente um dos primeiros.

A cantora Marília Batista [*13.04.1918 - +09.07.1990] incentivada pela mãe, pianista e pelo pai, médico, desde cedo desenvolveu sua aptidão para música. Empunhando violão [fato incomum para as meninas na época], aos oito anos já compunha e sonhava em ser solista. Aos doze fez seu primeiro recital, apresentando composições suas entre sambas e canções regionais. Aos quinze anos - em 1932 - gravou seu primeiro disco em 78 rpms com duas parcerias feitas com o irmão Henrique Batista. No ano seguinte, já está acompanhada por Noel Rosa, como destaque no famoso Programa do Casé, na Rádio Philips, o mais ouvido na época. A cada programa, novos sambas do também famoso poeta da vila eram apresentados.
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Foto histórica pertencente ao acervo do cantor Almirante, nos estúdios da rádio Mayrink Veiga: Mário Moraes, Cyro de Souza, Henrique Batista [irmão de Marília, também compositor], Marília Batista, Fernando Pereira, Renato Batista [irmão de Marília, também compositor] e Noel Rosa.

Marília Batista e Noel Rosa se conheceram em 1931, ela tinha quatorze anos, quando ele a viu se apresentar em uma festa, a sintonia foi imediata. Ao lado de Aracy de Almeida, Marília Batista foi a mais importante intérprete das composições de Noel Rosa. Boa moça, Marília tricotava nos intervalos da programação, enquanto Aracy acompanhava os rapazes em intermináveis noitadas pelos bares cariocas. Dona de voz e personalidade igualmente fortes, Marília também possuía humor refinado, como seu amigo Noel. No Programa do Casé ela criou o seu próprio prefixo: “Fala o Programa do Casé... / Veja se adivinha quem é... /Faço a pergunta por troça / Pois todo mundo já conhece / A garota da voz grossa...”. Além dos programas de rádio, Noel e Marília também dividiram os microfones em diversas gravações históricas, lançadas em 78 rpms pela Odeon, em algumas acompanhados pelo regional do Benedito Lacerda.

O “garota da voz grossa” não pegou, Marília Batista ficou conhecida mesmo pelo apelido delicado de: “Princesinha do Samba”. Com a inauguração da Rádio Nacional ela passa a integrar o cast como parte do conjunto vocal As Três Marias, que além de estrelas do elenco, também acompanhavam outros artistas. As Três Marias também gravam alguns discos e aparecem no filme “É Proibido Sonhar” de Moacir Fenelon, lançado em 1943.

No início de Maio de 1937, uma notícia nos jornais abala o Rio de Janeiro: Noel Rosa morre aos 27 anos de idade, vítima de sucessivas enfermidades, agravadas pelo estilo de vida boêmio. Marília Batista ainda mantém a carreira com sucesso por mais alguns anos, mas ao casar-se em 1945, se ausenta dos palcos e microfones.

Até 1952, quando é convidada pela gravadora Rádio para estrelar o primeiro LP produzido no Brasil. Uma homenagem a Noel Rosa, com arranjos do maestro Aldo Taranto. Oito sambas, sendo três, instrumentais. O resultado é uma obra-prima. Dos primeiros compassos de “Feitio de Oração” [parceria de Noel com o pianista Vadico], até a última frase de “Dama do Cabaré”, Marília Batista e Aldo Taranto registram versões perfeitas, senão definitivas, em arranjos que ao mesmo tempo evocam e transcendem as gravações originais feitas na década de trinta. As belas “Quando o Samba Acabar”, “Pra Esquecer” e “Dama do Cabaré” são os maiores exemplos. Não há como não destacar a partitura orquestral nas faixas. Nem mesmo o arranjo ousado do pequeno conjunto em “Pela Primeira Vez” [parceria com Cristovão de Alencar], onde Taranto coloca sopros dialogando com uma guitarra elétrica de maneira magistral. “Quem Ri Melhor” sobrepõe o conjunto e a orquestra, com grande beleza nos desenhos melódicos dos violinos - enquanto o samba come solto, com percussão marcada, pandeiros e a participação vocal das Três Marias. Já “Com Que Roupa?” comparece instrumental com solo de guitarra - músico infelizmente não creditado [seria o grande Laurindo Almeida?] - e um solo assombroso de piano do mestre Taranto em pessoa.

Marília Batista 1952 “Poeta da Vila nº 1” [Rádio 0001]

Foram lançadas diferentes edições deste disco, a que usamos para digitalizar possui o vinil perolado nos tons preto, vermelho e branco. Existe também uma edição com o vinil predominante branco, mas perolado em vermelho e preto, outra com o vinil acinzentado, além do vinil normal, inteiramente preto. Se alguém conhecer edições em outras cores deste disco, entre em contato!

Destacar a importância de Noel Rosa é chover no molhado. Faço questão porém, de mostrar aqui um bilhete encontrado na primeira página do álbum de recortes mantido pela mãe do compositor, apenas como ilustração de seu incrível senso de humor:

Imagem pertencente ao acervo de João Máximo e Carlos Didier, autores da caprichada e obrigatória “Noel Rosa, Uma Biografia” editado pela Linha Gráfica em 1990.

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01 Feitio de Oração [Noel Rosa, Vadico]
02 Até Amanhã [Noel Rosa] samba
03 Quando o Samba Acabou [Noel Rosa]
04 Pra Esquecer [Noel Rosa]
05 Com Que Roupa [Noel Rosa]
06 Quem Ri Melhor [Noel Rosa]
07 Pela Primeira Vez [Noel Rosa, Cristóvão de Alencar]
08 Dama do Cabaré [Noel Rosa]

arranjos do maestro Aldo Taranto